quarta-feira, março 22, 2006

Humildes de coração


Por uma dessas ironias do destino, a diretoria da mega-igreja foi convidada para a inauguração da creche comunitária localizada num dos bairros mais carentes do município.
A iniciativa, bem-intencionada, partiu de um membro da igreja, um vereador - meio populista diga-se de passagem - bem atuante naquela paupérrima comunidade, que vislumbrou uma ótima oportunidade de aumentar seu prestígio naquele reduto.
Afinal, a diretoria da mega-igreja prestigiando a inauguração de uma creche comunitária era um acontecimento!
O convite foi levado ao pastor Premium com toda a pompa e circunstância pelo vereador e seu assessor, mas eles não esperavam a recepção glacial que tiveram.
“Inauguração de creche comunitária? Qual o nome do bairro mesmo?”, tentou barrar a secretária bilíngüe ainda na recepção.
“É importante que ele vá, a comunidade tem um grande apreço pelo pastor Premium”, insistiu o irmão-vereador.
“Vou verificar a agenda dele e retorno para o irmão”, disse ela sorridente, encerrando a questão.
O convite foi recebido com um sorriso irônico pelo pastor Premium e seu assessor direto, pastor Platinum.
“Inauguração de creche comunitária num bairro afastado? Ruas de barro, com poças d’agua?”, perguntou.
“Se fizer sol, poeira na cara, não esqueça!”, acrescentou o pastor Platinum, rindo.
“Diga para ele que eu tenho uma reunião importante nesse dia, uma viagem, sei lá, dê um jeito”, diz ele, repassando o problema para a secretária.
Ao sair, ela ainda pôde ouvir o comentário final do pastor Premium: “Eu hein, quanto mais eu rezo mais assombração me aparece!”.
O que ele não esperava é que, habilmente, o vereador, talvez pressentindo a recusa, sondara a liderança da hiper-igreja, a tradicional rival e que estava buscando – como devo dizer – seu espaço junto a comunidade evangélica.
Assim que a informação chegou ao pastor Premium ele quase infartou.
“Secretária, ligue para o irmão-vereador e chame-o aqui, AGORA!”.
“Mas o senhor não mandou dispensá-lo? Eu já o avisei de que naquele dia é impossível”, respondeu ela.
“Pois você está despedida, sua incompetente! Para Deus não existe impossível! Ele transforma o impossível no possível! Chame-o agora e depois passe no RH!”, grunhiu ele.
O irmão-vereador veio assim que recebeu a notícia, embora não tenha entendido o ar choroso da secretária nem tampouco reconheceu a nova secretária na recepção da diretoria.
“Amado irmão-vereador, o irmão não sabe como fiquei consternado por esse terrível equívoco. Imagine que aquela incompetente havia confundido minhas orientações e não priorizou o seu convite”, inicia o pastor Premium.
“Aonde já se viu? Eu cansava de falar para ela que qualquer convite envolvendo apoio para nossas comunidades carentes tem total prioridadel”.
O irmão-vereador, sentindo-se valorizado, retribui: “O senhor não faz idéia de sua populariedade naquela comunidade, pastor Premium. Será ótimo tê-lo ali conosco”.
“Então, até lá!”, despede-o o pastor Premium.
Nos dias seguintes o pastor Premium, visivelmente preocupado, envolveu-se em reuniões com alguns de seus assessores mais diretos buscando uma espécie de “consultoria” sobre as classes menos favorecidas.
“Será que pega mal seu aparecer por lá com o BMW X5?”, pergunta ele.
“Nem pensar, vá de carona com o irmão-vereador”, responde um.
“E a roupa, uso aquele terno Armani ou o Hugo Boss que comprei em Roma?”.
“Use uma calça jeans e camiseta branca ou uma camisa social discreta, sem jóias ou relógios caros”, aconselha outro, “Também evite perfumes caros”.
O pastor Premium se exaspera.
“Ei, daqui há pouco você vai sugerir para eu usar tênis”.
O olhar dos assessores o convence de que eles iam orientar exatamente isso.
“Ok, ok. E se alguma daquelas pessoas mise..., digo humildes me convidar a entrar na casa deles, meu Deus, o que eu faço?”.
“Fique tranqüilo, estamos tentando nos antever a qualquer situação inesperada”.
E ficaram assim combinados.
Na tentativa de compartilhar o sofrimento, na noite anterior à inauguração o pastor Premium havia tentando convencer sua esposa a acompanhá-lo.

Afinal, seria ótimo para a imagem da igreja a presença não só do pastor, mas também do casal líder da mega-igreja.
Para seu desalento, sua esposa ouviu os detalhes do convite, a localização da creche e foi definitiva: “Perdeu o juízo? Me inclua fora dessa!”.
Ele ainda balbuciou alguns argumentos mas ela virou-se para o lado e dormiu.

Ele ainda tentou convidar sua filha, mas ela fechou e trancou a porta do quarto quando ele começou a narrar os detalhes.
O dia da visita amanheceu chovendo, continuou chovendo e na hora marcada estava caindo um verdadeiro dilúvio.
O pastor Premium se assustou quando a secretária o avisou da chegada do irmão-vereador e seu assessor, para levá-lo ao bairro afastado.
“Mas como, com essa chuva? Vai ter inauguração assim mesmo?”, tentou ele.
“Claro pastor Premium. E o que é uma chuvinha para o senhor? O povo já está lá esperando-o”, falava o irmão-vereador enquanto o conduzia para o carro.
O chefe da segurança do pastor Premium teve que ser convencido, depois de muita discussão, que não haveria risco em usar o veículo de vereador, abrindo mão de sua pickup blindada.
Ele só concordou porque sua escolta de três veículos abarrotados de seguranças – dizem que dois deles seriam ex-integrantes do serviço secreto isralense - iria acompanhá-los.
Devido a chuvarada, o bairro carente havia se transformado literalmente num mar de lama. Menos mal que as instalações da creche eram logo na subida do morro, poupando-os de escalarem uma ladeira íngreme e escorregadia.
Entraram na creche e a visão impactou o pastor Premium.
Centenas de pessoas humildes, muitos idosos, muitas crianças pequeninas, algumas descalças, outras sem roupa, enfim, o cotidiano dos bairros pobres.
O irmão-vereador falou algumas palavras, saudou a comunidade, apresentou o pastor Premium e pediu para ele trazer uma palavra ao povo.
Este estava distraído, olhando o estrago que o barro tinha feito no tênis Nike caríssimo que havia comprado.
Um dos pastores Platinum o cutucou e ele, meio a contragosto, começou a caminhar para a frente do palanque.
Assim que deu o primeiro passo, contudo, sentiu que algum livro estava sendo passado para ele.

O pastor Platinum, discretamente, colocou uma Bíblia em suas mãos.

Questão de vocação


Recém formado no seminário, o jovem se empolgou após participar de um dos cultos na mega-igreja.
Cheio de ânimo, ele resolve procurar alguém que possa ajudá-lo a fazer parte do grupo pastoral de tão prestigiada agência do Reino de Deus.
Sem saber exatamente por onde começar, foi até a secretaria da igreja, uma sala luxuosa com várias secretárias bilíngues sentadas em frente a terminais LCD de 17 polegadas.
Mas a única informação obtida, dita meio entre os dentes, era que todos os currículos devem ser preenchidos e enviados diretamente no site da igreja, via internet.
"Mas... e quem não tem computador, como eu?", perguntou, recebendo um olhar de incredulidade.
"Como assim? Não tem computador?! Você está brincando, não está?!"
Percebendo que todas as demais secretárias imediatamente olharam para ele, fitando-o como um Homem de Neanderthal repaginado, agradeceu e se retirou.
Em casa, orou, meditou sobre o assunto e tomou uma decisão: iria procurar o pastor Premium e falar com ele sobre seu chamado.
Afinal, com seu discernimento, aquele santo homem não só o aceitaria como poderia ser seu mentor numa caminhada de sucesso para honra e glória de Deus.
Bem, pelo menos era isso que ele pensava...
Nos dias seguintes, percebeu que seria mais fácil trocar umas bitocas com a rainha da Inglaterra do que se aproximar do líder máximo da mega-igreja.
O antigo costume de cumprimentar os membros na saída do culto havia sido abolido na mega-igreja assim que os MBA's assumiram o comando.
O pastor Premium entrava e saía do púlpito por uma discreta porta nos fundos, inacessível aos demais.
Dali ele era escoltado por seus três seguranças israelenses, até embarcar protegido numa das Mercedes classe S blindadas, de uso exclusivo do staff.
"Problemas radicais, soluções idem", pensou o jovem.
Assim, durante um culto dirigido pelo pastor Premium, o novel bacharel levantou-se e caminhou, aproximando-se do púlpito.
"Pastor Premium, preciso falar com o senhor! Eu sinto meu coração arder de amor pelas almas perdidas! Eu desejo de todo o meu ser fazer parte do grupo de pastores dessa igreja! O senhor tem que me ajudar!"
Enquanto ele estava apenas falando com o pastor Premium a situação estava mais ou menos calma, apesar da cara apavorada do pastor.
Emocionado, ele perde a noção do perigo, aproximando-se do púlpito para dar um abraço no condutor do rebanho da mega-igreja.
Súbitamente, sentiu tudo escurecer, parecendo que puxaram o chão debaixo de seus pés.
Acordou com o incômodo de uma luz forte.
"Está recuperando a consciência", comentou o médico da UTI móvel, guardando a lanterna.
"O que houve?", perguntou, sentindo uma forte dor de cabeça e a falta de dois dentes molares.
"Apenas um lamentável mal entendido, meu jovem", lhe disse um risonho pastor Advanced, ajudando-o a se levantar da cama.
"Você sabe como é, essa violência absurda, maníacos, agentes do maligno. Nossos seguranças não são advinhos, eles tem que agir para evitar que algum demônio atinja o ungido do Senhor, não é mesmo?".
O ex-seminarista balançou a cabeça, ainda zonzo e vendo tudo meio fora de foco.
Sábiamente, resolveu aproveitar a oportunidade e falou ao pastor Advanced sobre seu anseio.
O pastor coçou a cabeça, pensativo.

"Meu jovem, o processo seletivo é árduo, difícil e exige alta capacitação. Mas verei o que posso fazer".
Naquele mesmo dia reuniram-se o pastor Premium, o pastor Advanced e os advogados da mega-igreja, para comentarem sobre o ocorrido.
"Pastor Premium, na verdade ele tentou atrair sua atenção para ajudá-lo a tentar entrar para o staff pastoral da mega-igreja".
"Então virou bagunça? Daqui há pouco qualquer um vai se achar no direito de vir falar diretamente comigo, onde já se viu?! Aonde nós vamos parar?! Além disso, não é tão simples assim ingressar no staff".
Um dos advogados pediu a palavra e ponderou que não ouvir o rapaz poderia criar um clima favorável a represálias, inclusive na área judicial.
A menção da expressão “área judicial” provocou um silêncio sepulcral na imensa CEO room.

Segundo a filosofia do pastor Premium, "a justiça dos homens é sempre contrária ao Reino de Deus" e complicações devem ser evitadas.
Assim, no dia seguinte, o bacharel recebeu um telefonema para comparecer a uma entrevista com um pastor Premier, encarregado da área de prospecção de novos talentos.
O rapaz passou a noite em oração, releu suas anotações da época do seminário, decorou alguns textos de pensadores evangélicos, pôs sua melhor roupa, pegou a Bíblia e marchou para a mega-igreja.
A fria recepção da secretária na ante-sala do pastor Premier não o desanimou.
Aliás, não desanimou nem mesmo após esperar por mais de três horas para ser atendido.
Finalmente, a secretária o conduziu até a sala, aonde o pastor Premier encontrava-se sentado, ao lado do pastor Master.
“Meu bom jovem, sente-se por favor!”, falou ele, sem levantar para cumprimenta-lo.
“Espero que você tenha trazido um currículo”, insinuou, olhando que ele só carregava a Bíblia.
O bacharel em teologia falou olhando fixamente para seu interlocutor: “Na verdade não trouxe, pastor Premier. Pensei que seria uma entrevista acerca de minha vocação, experiência de conversão, etc.”.
“Sua vocação, experiência de conversão? Sim, claro... Mas um currículo ajuda a poupar tempo, você sabe”.
Então o pastor Máster se antecipou: “Meu rapaz, qual o seu nível de conhecimento de outros idiomas?”.
A pergunta desconcertou o ex-seminarista. “Desculpe, não entendi”.
“Quero saber se você fala ou escreve em inglês, espanhol, alemão, italiano, etc?”.
“Bem, na verdade, não”.
O pastor Máster olhou sério para seu companheiro de mesa.
“Bem meu caro, você sabe que nossa igreja é uma organização em processo de franca expansão. Não existem limites para essa agência do Reino de Deus, pois pretendemos ser conhecidos em todo o mundo. Dessa forma, como falaremos aos povos além-mar, se não dominarmos a linguagem deles? Somos uma igreja que olha para além das fronteiras. É evidente que você entende isso, não é?”
Meio ressabiado, o ex-seminarista balança a cabeça e ouve a outra pergunta: “Em qual instituição você fez sua pós-graduação? FGV? Mackenzie? Unicamp?”.
“Não fiz pós-graduação e me desculpe, mas não conheço nenhum desses seminários que o senhor citou”.
O pastor Premier coçou a cabeça.
“Não são seminários, meu rapaz. São instituições de renomada reputação na formação de líderes de gestão. Uma igreja como a nossa há muito extrapolou o perfil normal das igrejas. Engana-se quem pensa que hoje a mega-igreja é apenas um local para culto. Pretendemos ser a representação exata do poder e glória de Deus na terra, dominando e sobrepujando as demais instituições, de forma a demonstrar o poderio dos filhos de Deus!”, explicou um exaltado pastor Máster”.
“Diante disso, nem vou perguntar se você tem um MBA no currículo”, resmungou o pastor Premier.
“Um MB o quê?”, começou a perguntar o rapaz.
“Sua família é bem conhecida? Ao menos é tradicional no meio evangélico?”, bombardeou.
“Sou o primeiro convertido de minha família, pastor”.
O rapaz percebeu que o pastor Máster estava meio irritado, embora tentasse disfarçar.
“Jovem, os pastores da mega-igreja precisam alcançar a elite da sociedade. Com certeza você tem idéia da classe de pessoas com as quais teria que lidar como pastor da mega-igreja. Políticos, artistas, empresários, jogadores de futebol ricos e famosos, modelos, etc. Como filhos do Rei, precisamos nos impor diante deles, fazendo-os entender sobre a soberania e do poder de Deus em nossas vidas. Sendo da mesma classe social deles temos nosso diálogo facilitado, entende?”.
“Entendi.”, murmurou o desanimado candidato.
“Bem, diante do que você mesmo nos respondeu, desculpe a franqueza, mas não podemos recomendar ser nome ao pastor Premium. Existem muitas lacunas para preencher”.
O jovem se levantou, apertou as mãos dos pastores e saiu, abatido, fechando a porta atrás de si.
“Nem uma pós na FGV o sujeito tem? Aí fica difícil...”, comenta o pastor Premier.
“Até minha filha de 12 anos já fala fluentemente inglês! Pela madrugada!”, concorda o pastor Máster, caminhando para o elevador privativo, no qual desceria para a garagem para pegar sua Mercedes.
“O pior, pastor Premier, é que depois ainda é capaz de sair por aí falando que é má vontade nossa.”O pastor Premier abre a porta de sua Audi A8 e se despede, com o comentário definitivo: “Não se culpe, pastor Máster, o mundo está cheio de pessoas ingratas”.

sexta-feira, março 10, 2006

Singeleza de coração


A diaconisa cumprimentou o pastor Premium na saída do culto na mega-igreja e lhe segredou: estamos preparando uma surpresa para o senhor.
Ele sorriu e agradeceu a simpática irmã.
Mais tarde, no 8º andar, no CEO Ministry Room, ele perguntou ao seu assessor direto, o pastor Platinum, o que ela quis dizer.
“Acho que deve ser algo relacionado ao seu aniversário. Devem ter preparado um bolo, etc. Sabe como essa turma é”.
“O que? Só me faltava essa! Vou receber o vice-governador para um jantar em minha casa nesse dia e ele me prometeu levar o relator da comissão de assuntos religiosos. É a chance que eu estou esperando há tempos”.
“Ok, vou checar o que realmente prepararam e lhe aviso”, conclui o pastor Platinum.
Sem grande esforço o assessor descobriu que, de fato, as irmãs pretendiam fazer um “bolinho”, dar-lhe os parabéns, cantar alguns louvores e uma das irmãs iria trazer uma breve meditação.
De posse da preciosa informação, a repassou ao pastor Premium, que ficou mais aliviado.
“Já pensou se essa turma resolve aparecer em minha casa à noite? Ninguém merece!”, comenta ele com o pastor Platinum.
Mas, por umas dessas ironias do destino – ou desíginios divinos - chegado o dia do aniversário, o pastor Premium prega apenas no culto das 13h e vai embora para casa, para estar bem disposto para o jantar com o vice-governador.
As irmãs ao descobrirem que o pastor Premium não retornaria à igreja ficam meio desapontadas, até que uma delas propõe: “Vamos fazer uma surpresa completa. Que tal irmos para sua casa, levarmos o bolo, os refrigerantes e lá fazermos a homenagem? Ele com certeza irá gostar!”
À noite, o aparato no condomínio “Heaven´s Gardens” estava mais movimentado do que o normal.
Afinal, o condomínio abriga algumas das residências mais caras e suntuosas da cidade e várias personalidades do mundo empresarial, político e artístico moram ali.
Naquela noite, intensificaram a segurança devido a presença do vice-governador, seus assessores e várias personalidades do governo que compareceriam ao jantar na casa do pastor Premium, uma das mais imponentes do condomínio.
Assim, quando o grupo de senhoras se aproximou do portão carregando vários embrulhos, a reação natural dos seguranças foi de alerta.
“Alto lá! Aonde pensam que vão?”, rugiu um dos seguranças, um atlas com mais de dois metros de altura.
Tentando demonstrar calma, uma das irmãs respondeu:”Nós vamos à casa do pastor Premium. Hoje é aniversário dele e viemos lhe fazer uma surpresa”.
O segurança olhou bem sério para elas e se comunicou com o chefe do segurança através do fone de lapela.
Visto que não tinham muito a argumentar – nem era prudente fazê-lo - as irmãs ficaram paradas, ouvindo o diálogo travado entre o segurança e seu chefe.
“Elas estão dizendo que vieram fazer uma surpresa para o pastor Premium”.
“Sei, sei, ok chefia, pode deixar comigo. Positivo”, disse ele, encerrando o diálogo.
“E então”, perguntou a irmã, “podemos entrar?”.
“Não, não podem! Aconselho vocês a sumirem daqui antes que chegue a comitiva do vice-governador!”.
“Mas isso é um abuso!”, reagiu uma irmã.
“Olha aqui, minha tia, não abuse da sorte. Pode ir!”, encerrou o assunto outro segurança, ainda maior e mais forte do que o primeiro, abrindo o terno e deixando aparecer uma pistola que mais parecia um canhão.
A prudência e o instinto de sobrevivência falaram mais alto e as irmãs se foram, sumindo na rua escura.
Enquanto observa o grupo se retirar, o segurança recebe um chamado da casa do pastor Premium. “E então, elas desistiram?”, pergunta alguém, aflito.“Elas tem juízo, chefia, elas tem juízo”, tranqüiliza-o o segurança, um gigante de ébano.

Todos são iguais, mas uns são mais iguais que outros


Uma insinuação que definitivamente não pode ser feita à mega-igreja é de que ali não haja igualdade de tratamento.
O próprio pastor Premium costuma dizer que “a justiça começa em casa”.
Por isso, quando numa sessão administrativa foi levantado um caso de disciplina envolvendo um dos sobrinhos do pastor Premium, houve um natural interesse dos membros.
Segundo testemunhas, durante um dos acampamentos de jovens realizados pela mega-igreja, um dos sobrinhos do pastor Premium, entediado com o “marasmo do local e com as atividades monótonas” - segundo suas próprias palavras - teria tentado “descontrair” o ambiente, ligando o sistema de som instalado no porta-malas de seu carro e deixando-o ligado em volume ensurdecedor tocando funk durante toda a noite, apesar dos protestos e apelos dos líderes. A situação se complicaria com a chegada da polícia, chamada pelos vizinhos do acampamento, pois o garoto, menor de idade, se recusou a mostrar os documentos do automóvel e ameaçou os policiais, dizendo que “eles não sabiam com quem estavam se metendo”.
O caso só veio à tona por insistência de um dos líderes, responsável pela programação do acampamento, que levantou no plenário e relatou o ocorrido, cobrando providências.
O pastor Premium, que dirigia a sessão, fez um ar solene e decidiu que seria formada uma comissão para “apurar os fatos, ouvir as testemunhas e decidir em conjunto que decisão tomar”.
O próprio pastor Premium nomeou a comissão que foi formada por ele, o pastor advanced (pai do garoto), o pastor Platinum (seu assessor), sua irmã (mãe do garoto) e o Humanitarian Relief Chief (seu sobrinho).
Após isso, ele nada mais falou e nada mais lhe foi perguntado.
Na sessão seguinte, naturalmente, a expectativa era grande.
No momento apropriado, o pastor Premium, relator da comissão, tomou a palavra e iniciou a leitura do relatório: “Irmãos da mega-igreja, nós nos reunimos com os líderes daquele acampamento, ouvimos várias testemunhas e também ouvimos o meu sobrinho, apesar de ainda estar traumatizado com tão dolorosa experiência. Diante de tudo que vimos e ouvimos, chegamos a algumas conclusões e decisões”.
“Primeiro, ficou evidente que a programação de nossos acampamentos precisa ser revista, de forma que haja atividades que envolvam os jovens, não deixando-os desmotivados nem enfadados. Nesse sentido, recomendamos que o responsável pela programação do referido acampamento seja advertido”.
“Segundo, os jovens de hoje são naturalmente inovadores e irreverentes. Tal característica deve ser entendida e trabalhada para que resulte em crescimento do jovem como indivíduo. A ação do jovem, ligando o som do seu carro, demonstrou uma inquietude criativa, que deveria ter sido explorada de forma positiva. Ali expôs também um gesto de não conformidade com o programa antiquado que, infelizmente, o responsável pela programação do acampamento impôs aos jovens. Recomendamos que, a partir de agora todos os acampamentos tenham a participação de um psicólogo, alguém realmente habilitado a lidar e interagir com os jovens”.
“Em terceiro lugar, os jovens de hoje são contestadores. Amados irmãos, é uma benção que tenhamos em nosso meio jovens que desde cedo revelem inconformismo com o exercício do autoritarismo arbitrário. Sim, fico feliz que meu sobrinho tenha dito não a pressão exercida por aqueles policiais, que tentaram, através de coação, fazê-lo desligar o som de seu veículo, exercendo dessa forma sua cidadania, seu direito de agir de acordo com seu livre arbítrio. Por outro lado, me entristece saber que os líderes do acampamento se uniram aos policiais e, ao invés de protegerem e ampararem meu sobrinho de tão covarde agressão, trouxeram o caso aqui para a sessão de forma incompleta, numa versão irreal. Diante disso foi decidido que o meu sobrinho, inclusive como forma de reparar a injustiça sofrida, passe a coordenar o grupo organizador de acampamentos”.
O pastor Premium fez então uma pausa para concluir o relatório.
“Infelizmente, em nosso trabalho de ouvir os participantes do acampamento, fomos informados de que dois jovens, filhos do responsável pela programação do acampamento, “furaram” a fila na hora do almoço.”
“Irmãos, algumas laranjas podres podem estragar todo o restante da cesta e diante dessa evidente falta de respeito ao direito dos demais irmãos, que evidencia uma grave falha de caráter, recomendamos a mega-igreja a exclusão desses dois jovens, para que sirvam de exemplo”.
Além de justo, disciplinador.

Não basta ser honesto

A ultima sessão administrativa foi especialmente tumultuada.
Um novo membro da mega-igreja questionara a prestação de contas apresentada à assembléia pelo pastor referente a sua última viagem .
“Senhor presidente, gostaria que o relator da comissão de exame de contas explicasse a que se refere essa despesa de US$ 15.000 de aluguel de limousines e essa outra despesa de US$ 45.000 de fretamento de helicóptero”.
O relator engoliu em sêco, gaguejou e o próprio pastor Premium veio em seu socorro. “Calma, meus irmãos. Não deixemos que o veneno da desconfiança e da maledicência invada nossa mega-igreja. Cada centavo gasto nessa viagem foi um investimento na propagação do Reino de Deus”.
“Os verdadeiros cristãos, crentes legítimos, membros da mega-igreja tem essa certeza em seus corações. O irmão não tem essa certeza?”, desafiou, dirigindo-se ao jovem questionador.
“Insisto que gostaria de ouvir a palavra do relator da comissão”, devolveu o rapaz.
O pastor Premium, visivelmente irritado com a impertinência daquele insolente, subiu o tom: “Meu jovem, quem está falando com o irmão é o presidente da mega-igreja, o pastor Premium. Sou um obreiro escolhido por Deus, à frente do ministério dessa mega-igreja. O irmão já ouviu falar em submissão aos líderes?”.
“E o pastor Premium já ouviu falar em prestação de contas?”, encerrou ele, se retirando do plenário.
Naquele MCSmo dia houve uma reunião na Ministry CEO Room, no oitavo andar.
Toda a alta diretoria da mega-igreja estava reunida.
O pastor Premium estava agitado, andando de um lado para o outro.
Ele começou a reunião indo direto ao assunto.
“Temos que encontrar um jeito de acabar com essa história de assembléia administrativa. Isso é um atraso! Quer dizer que qualquer um pode se levantar e começar a questionar minhas, digo, nossas decisões? Isso não existe”.
O consultor jurídico da mega-igreja, um dos maiores advogados da cidade, jurista conceituado, foi claro: “É exatamente assim que funciona, pastor Premium. Qualquer membro da mega-igreja pode pedir esclarecimento sobre os assuntos levados à assembléia”.
O tom definitivo que o jurista deu ao assunto causou um certo desconforto na diretoria. Quer dizer que existe o risco de algum membro se levantar na sessão e contestar as passagens de primeira classe, as hospedagens em hotéis cinco estrelas e as notas de compras nos free-shops dos aeroportos?
E o que dizer das despesas com blindagem dos carros do pastor Premium e de sua família e a locação do jato executivo?
Essa possibilidade fez o pastor Premium decretar que a forma como a assembléia administrativa era realizada teria que ser revista.
A principal mudança é que as assembléias administrativas acabariam e as decisões relevantes seriam tomadas pela alta diretoria e informadas à mega-igreja, se assim fosse necessário.
Prestações de contas, balanços, relatórios financeiros e aprovação de orçamentos, por ser assuntos que, pela própria natureza, levam alguns irmãos a serem “excessivamente zelosos”, segundo palavras do pastor Premium, passariam a ser decididos pelo pastor Premium e seu assessor, o pastor Platinum.
Como homens segundo o coração de Deus, obedientes a recomendação do Espírito Santo, a mega-igreja podia confiar neles de forma irrestrita.
Em todos os assuntos, contudo, a palavra definitiva caberia ao pastor Premium.
O grande temor da alta diretoria é que a alteração do estatuto da mega-igreja, necessária face a mudança pretendida, fosse algo tumultuado.
Mas o pastor Premium mais uma vez comprovou sua habilidade, convocando uma sessão extraordinária durante o culto das 03h da madrugada e pôde aprovar a reforma do estatuto com a aprovação unânime de cinco sonolentos membros.

quinta-feira, março 02, 2006

Fazei o bem


A parte de ação social da mega-igreja era algo sempre abordado nas reuniões semanais do staff gerencial.
Percebia-se, ainda que veladamente, que havia um desejo, por parte do staff, de dar ao departamento a “cara” da mega-igreja.
O primeiro passo foi buscar no mercado um profissional com uma visão contemporânea do que é, de fato, ação social.
Assim foi feito.
O novo CEO da área, um ex-executivo de uma das maiores empresas de RH do mercado, tinha uma visão bem particular do que seria ação social e não abria mão dela.
“Ação social num país de miseráveis analfabetos como o nosso se faz com educação, e ponto final!”, disse numa das primeiras reuniões, sendo aplaudido com entusiasmo, sobretudo pelo pastor Premium.
Afinal - descobriu-se mais tarde - ele era seu sobrinho e nem mesmo o fato de que não saberia distinguir uma Bíblia de uma lista telefônica influenciou a decisão de nomeá-lo Humanitarian Relief Chief da mega-igreja.
Afinal, ele possuía um MBA e um doutorado – ainda que o MBA fosse na área de Tecnologia da Informação e o doutorado na área de Ciências Contábeis.
Nessa reunião, seu estilo “The Boss” acabou gerando algum mal-estar, principalmente entre a turma mais antiga ligada ao departamento de ação social.
“Para começar, já mandei confeccionar as novas placas de identificação com a nova denominação de nosso departamento. Vamos abolir a antiga expressão “Ação Social” e nos modernizar”, disse ele assim que o pastor Premium lhe franqueou a palavra.
Algumas irmãs idosas, cautelosas, alegaram que algumas pessoas humildes e sem instrução poderiam ter dificuldades em associar o novo nome ao antigo serviço.
“Problema deles!!!”, vociferou o HRC, “Vocês precisam entender que a nova proposta é erradicar esse tipo de ignorância”.
Cabisbaixas, as irmãs permaneceram em silêncio pelo restante da reunião, ante o olhar reprovador do pastor Premium.

"Essa turma não se emenda", comentou ele em voz baixa com o pastor Platinum.
Seguiu-se então uma apresentação muito bem elaborada, toda em multi-mídia, usando recursos como projetor data-show e power point, exemplificando toda a nova estratégia da área da Humanitarian Relief.
A maioria absoluta dos antigos integrantes e colaboradores do finado departamento de Ação Social não entenderam quase nada do que era explicado, talvez porque sobravam expressões em inglês e termos das áreas de administração de empresas, marketing, tecnologia da informação, sociologia, etc. Mas alguma coisa pôde ser entendida, embora ao final muitos preferissem ter ficado sem saber dessas novidades: a distribuição de cestas básicas para as famílias carentes seria encerrada, pois era um “paternalismo sem sentido, fora do padrão atual de auxílio adotado pelas mega-igrejas de todo o mundo”; os cursos de corte e costura, artesanato, remédios caseiros, produção de pães e outros seriam extintos, sendo substituídos por “algo mas antenado com a modernidade” como criação de websites, técnicas para criação de weblog´s, fotografia digital, programação de aplicativos para palmtop´s, tecnologia wireless e por aí vai.
Mas o pior ainda estava por vir.
Na saída da reunião, ainda atônitas com a enxurrada de informações, as diaconisas e os diáconos saíam meio aturdidas pelo imenso corredor da mega-igreja, quando se depararam, chocadas, com uma autêntica agressão.
A sala do Bazar Beneficente, um orgulho das irmãs, estava sendo esvaziada, como todas mercadorias e equipamentos sendo arremessados para um caminhão, sem o menor cuidado.
No lugar da placa com a inscrição “Bazar Beneficente Sião”, um dos funcionários afixou uma belíssimo painel com luz interna no qual se lê “Humanitarian Relief Center”. A diaconisa mais idosa da igreja, ao ver aquilo, desmaia.

Igualdade e fraternidade


A grandiosa festa de encerramento do ano eclesiástico da mega-igreja sempre era um evento aguardado com ansiedade.
As atrações especiais - algumas internacionais -, o local do evento - sempre num hotel cinco estrelas e a qualidade do serviço de buffet eram motivo de orgulho da diretoria da mega-igreja.
Esse ano foi o próprio pastor Premium quem trouxe a grande novidade: como reconhecimento pelo excelente desempenho – sabe-se lá o que isso o queria dizer - da mega-igreja no ùltimo ano, o staff gerencial, em sua ùltima reunião, decidiu que os pastores categoria Gold, Platinum e Silver iriam passar uma semana no Viña Del Mar Resort, com todas as despesas pagas.
Gritos efusivos de alegria saudaram a comunicação.
Contudo, nos dias seguintes, a decisão acabou causando algum mal-estar entre os líderes da mega-igreja.
Um dos motivos é que a idéia inicial era enviar sómente os pastores, sem acompanhantes.
O outro motivo é que, excetuando-se os pastores das categorias citadas, não se cogitou de oferecer nenhum tipo de prêmio aos demais obreiros - categorias Advanced, Premier, Master e outras menos cotadas.
A primeira reação organizada surgiu das esposas dos pastores, tanto aquelas cujos conjugues haviam sido contemplados como dos esquecidos.
A princípio a diretoria adotou a tática de ignorar os descontentes, usando até mesmo o púlpito para um “puxão de orelhas”, com exortações direcionadas “para aquelas ovelhas rebeldes que insistem em não se submeter ao senhorio da liderança pastoral, etc, etc.”.
Mas bastou uma das esposas ameaçar levar o caso a um desses programas de TV que fazem da exploração de escândalos sua razão de existir para que surgissem propostas conciliadoras.
Assim, numa reunião a portas fechadas entre as representantes e o alto escalão da mega-igreja, algumas mudanças ocorreram.
A primeira é que os pastores poderiam levar a esposa e filhos na viagem.
No entanto, alegando que tal decisão inviabilizaria a ida para o Viña Del Mar Resort, o destino passaria a ser Campos do Jordão-SP.
E numa segunda decisão, foi decidido que os pastores não incluídos nas categorias agraciadas (Gold, Platinum e Silver), mas que tivessem obtido avaliação nível 3 na última AAP (Annual Assessment Performance) poderiam acompanhá-los.
Um sorriso amarelo surgiu nos lábios do staff ao ouvir as decisões, proferidas pelo pastor Premium durante o jantar especialmente realizado para esse fim, com a presença de todas os 216 pastores e suas famílias.
Após a comunicação, o pastor Premium tomou a palavra e “chicoteou” os insurgentes, trazendo uma mensagem algo confusa, mas entremeada de expressões como “rebeldes”, “filhos da ira”, “desestabilizadores da paz”, “bodes” e por aí vai.

O passeio a Campos do Jordão? Bem, ele ocorreu, mas choveu o tempo todo...

Lançai as redes


O staff da mega-igreja havia se reunido com o CEO da área de prospecção evangelística e este conseguira convencer a todos da infalibilidade de sua estratégia.
A mega-igreja ainda não conseguira atrair um número significativo de visitantes de um novo condomínio recém-inaugurado, dedicado a alta classe média.
Todos os esforços anteriores revelaram-se pouco eficazes.
Os recursos normalmente utilizados, como mala direta (belíssima, confeccionada em papel gouche de alta qualidade), convites personalizados (caríssimos, impressos em papel importado) e até mesmo o serviço de call-center estavam se revelando perda de tempo – e de recursos, o que irritava profundamente o pastor Premium.
A estatégia consistia em organizar um mega-culto de prospecção evangelística estruturada.
“Você quer dizer um culto evangelístico?”, perguntou um diácono idoso, tentando traduzir o termo em algo inteligível para ele.
“É muito, muito mais do que isso, meu bom homem”, retrucou o pastor Premium, pousando a mão em seu ombro.
A idéia era convidar alguém que fosse interessante para o público alvo, adequar um pouco a liturgia, usar cânticos de fácil assimilação e pronto!
“Genial! Vamos ao trabalho”, bradou o pastor Premium, encerrando a reunião.

O CEO da área de prospecção evangelística olhava pelo imenso janelão da sala do CEO Ministry Room, no oitavo andar, contemplando com satisfação a chegada de muitos visitantes para o I Open Door Workship (Culto de Portas Abertas), inteiramente dedicado a prospecção e captação de novos colaboradores, digo, membros.
Os recepcionistas – todos contratados de uma empresa de modelos - foram escolhidos a dedo. As moças e rapazes, vestidos com sobriedade e elegância deveriam abordar os convidados, saudando-os e entregando-lhes os programas que mais pareciam caras revistas.
O som da mega-igreja já estava ligado, fazendo ecoar por toda a nave o som contemporâneo de grupos instrumentais, a maioria não evangélicos.
Os guardadores de automóveis tiveram que se desdobrar para cuidar de tantos carros, ante o olhar atento do supervisor.
No horário marcado, as luzes do salão foram apagadas.
Na escuridão, a voz possante de um locutor especialmente contratado estremece as imensas paredes de vidro do salão anunciando a plenos pulmões: “Sejam todos muito bem-vindos ao I Open Door Workship!”.
Em seguida, uma pirotecnia de luz e cores acompanha o grupo de coreografia “Joshua Angels”, formado por profissionais de dança e teatro, alguns evangélicos.
A diretora do grupo, uma diretora de uma das companhias de dança mais conceituadas do mercado havia sido contratada a peso de ouro, após um autêntico “leilão” com outra mega-igreja.
A apresentação, de cerca de meia hora, encanta aos presentes.
Imediatamente após a saída do grupo, o CEO da área de prospecção evangelística vai ao palco falar sobre a imensa satisfação de receber pessoas tão simpáticas na mega-igreja.
Ele ainda conta algumas piadas, comenta sobre futebol, repete alguns bordões da novela das oito e conclui anunciando uma surpresa, alguém que iria trazer uma forte palavra de testemunho para eles.
Apagam-se as luzes e o canhão focaliza um homem com um elegante terno, que começa a andar com desenvoltura pelo palco enquanto narra sua trajetória de vida marcada por envolvimentos por romances com mulheres casadas, atrizes famosas – todas devidamente citadas pelo nome – e complicações com a justiça.
Ele passa cerca de vinte minutos falando de sua vida pregressa com detalhes, alguns escabrosos e, e aos 50 segundos do 19º minuto, fala de sua decisão ao participar de um culto na mega-igreja, concluindo: “Agora sou um vencedor!”.
Os aplausos efusivos foram puxados pelo CEO da área de prospecção evangelística, que surge no palco e retoma a palavra.
“Eu sei que vocês hoje vieram até aqui buscando movimento, agitação e então, agora vamos agitar!”, berra ele ao microfone.
As luzes do palco são acesas, revelando o imenso arsenal de instrumentos e equipamentos musicais espalhados pelo palco.
Ouve-se o tradicional “um, dois, três” e uma avalanche sonora toma conta da mega-igreja, com uma banda liderada por um casal algo exótico.
Ele usa uma camiseta vermelha com algo parecido com uma abelha gigante amarela, um bermuda lilás dois números acima e tênis Nike Air colorido.
Ela usa uma saia curta sobre uma malha verde néon e blusa de manga comprida preta. O detalhe fica por conta dos óculos modelo gatinho.
Cada um a seu modo ajuda a “descontrair” os visitantes.
“Vamos lá, gente, é pra pular!”.
Num dos cantos da nave surge um “trenzinho”, comandado por um dos integrantes do grupo, um sujeito com uns dois metros de altura, extremamente pálido, careca, usando um uniforme militar estilizado e coturnos iguais ao do exército, só que na cor laranja.
O “trenzinho” arrasta os últimos que ainda estavam sentados nas cadeiras estofadas, enquanto no palco o casal comandava as coreografias.
“Agora com as mãos para o alto, assim!”.
“Agora joga os braços pra cima, pra direita. Bonito!”
“Agora joga os braços pra baixo, pra esquerda. Abalou!”
Aqui e ali surgem sprays de espuma, fornecidos sabe-se lá por quem e com quais intenções.
“Agora vamos fazer bem bonito que é pra acabar!”, anuncia o casal, enquanto pula de mãos dadas.
Após quarenta minutos, a banda encerra sua parte, cantando uma versão apoteótica de “My sweet Lord”, do ex-beatle George Harrison, com uma letra pseudo-evangélica.
O CEO da área de prospecção evangelística volta ao palco, dessa vez para apresentar o pastor Premium, o líder inconteste da mega-igreja, saudado por palmas lideradas pelo próprio.
Elegantemente trajado num belíssimo terno Armani, ele ocupa o centro do palco, que num efeito cuidadosamente preparado pela equipe de som e luz, começa a escurecer enquanto o foco de luz vai se tornando mais concentrado e brilhante sobre ele.
“Poderia falar horas e horas sobre o que a mega-igreja tem para oferecer a todos vocês, meus queridos, mas as imagens são mais fortes e poderosas do que palavras”, diz, enquanto um telão de tamanho descomunal desce lentamente às suas costas.
O salão fica então inteiramente às escuras.
As cenas inicias do filme mostram tomadas aéreas, num sobrevôo por um imenso gramado e depois um canteiro de lírios.
Uma música suave enche o ambiente, e a voz firme do narrador começa as perguntas: “Como é a sua vida? Você quer ser um vitorioso? Um líder? Um conquistador?”.
A resposta vem logo a seguir: “Então venha para a mega-igreja”.No fundo do palco, em meio a penumbra, o CEO olha para o pastor Premium e faz um sinal de positivo com a mão.O staff da mega-igreja havia se reunido com o CEO da área de prospecção evangelística e este conseguira convencer a todos da infalibilidade de sua estratégia.
A mega-igreja ainda não conseguira atrair um número significativo de visitantes de um novo condomínio recém-inaugurado, dedicado a alta classe média.
Todos os esforços anteriores revelaram-se pouco eficazes.
Os recursos normalmente utilizados, como mala direta (belíssima, confeccionada em papel gouche de alta qualidade), convites personalizados (caríssimos, impressos em papel importado) e até mesmo o serviço de call-center estavam se revelando perda de tempo – e de recursos, o que irritava profundamente o pastor Premium.
A estatégia consistia em organizar um mega-culto de prospecção evangelística estruturada.
“Você quer dizer um culto evangelístico?”, perguntou um colaborador idoso, tentando traduzir o termo em algo inteligível para ele.
“É muito, muito mais do que isso, meu bom homem”, retrucou o pastor Premium, pousando a mão em seu ombro.
A idéia era convidar alguém que fosse interessante para o público alvo, adequar um pouco a liturgia, usar cânticos de fácil assimilação e pronto!
“Genial! Vamos ao trabalho”, bradou o pastor Premium, encerrando a reunião.

O CEO da área de prospecção evangelística olhava pelo imenso janelão da sala do CEO Ministry Room, no oitavo andar, contemplando com satisfação a chegada de muitos visitantes para o I Open Door Workship (Culto de Portas Abertas), inteiramente dedicado a prospecção e captação de novos colaboradores.
Os recepcionistas – todos contratados de uma empresa de modelos - foram escolhidos a dedo.
As moças e rapazes, vestidos com sobriedade e elegância deveriam abordar os convidados, saudando-os e entregando-lhes os programas que mais pareciam caras revistas.
O som da mega-igreja já estava ligado, fazendo ecoar por toda a nave o som contemporâneo de grupos instrumentais, a maioria não evangélicos.
Os guardadores de automóveis tiveram que se desdobrar para cuidar de tantos carros, ante o olhar atento do supervisor.
No horário marcado, as luzes do salão foram apagadas.
Na escuridão, a voz possante de um locutor especialmente contratado estremece as imensas paredes de vidro do salão anunciando a plenos pulmões: “Sejam todos muito bem-vindos ao I Open Door Workship!”.
Em seguida, uma pirotecnia de luz e cores acompanha o grupo de coreografia “Joshua Angels”, formado por profissionais de dança e teatro, alguns evangélicos.
A diretora do grupo, uma diretora de uma das companhias de dança mais conceituadas do mercado havia sido contratada a peso de ouro, após um autêntico “leilão” com outra mega-igreja.
A apresentação, de cerca de meia hora, encanta aos presentes.
Imediatamente após a saída do grupo, o CEO da área de prospecção evangelística vai ao palco falar sobre a imensa satisfação de receber pessoas tão simpáticas na mega-igreja.
Ele ainda conta algumas piadas, comenta sobre futebol, repete alguns bordões da novela das oito e conclui anunciando uma surpresa, alguém que iria trazer uma forte palavra de testemunho para eles.
Apagam-se as luzes e o canhão focaliza um homem com um elegante terno, que começa a andar com desenvoltura pelo palco enquanto narra sua trajetória de vida marcada por envolvimentos por romances com mulheres casadas, atrizes famosas – todas devidamente citadas pelo nome – e complicações com a justiça.
Ele passa cerca de vinte minutos falando de sua vida pregressa com detalhes, alguns escabrosos e, e aos 50 segundos do 19º minuto, fala de sua decisão ao participar de um culto na mega-igreja, concluindo: “Agora sou um vencedor!”.
Os aplausos efusivos foram puxados pelo CEO da área de prospecção evangelística, que surge no palco e retoma a palavra.
“Eu sei que vocês hoje vieram até aqui buscando movimento, agitação e então, agora vamos agitar!”, berra ele ao microfone.
As luzes do palco são acesas, revelando o imenso arsenal de instrumentos e equipamentos musicais espalhados pelo palco.
Ouve-se o tradicional “um, dois, três” e uma avalanche sonora toma conta da mega-igreja, com uma banda liderada por um casal algo exótico.
Ele usa uma camiseta vermelha com algo parecido com uma abelha gigante amarela, um bermuda lilás dois números acima e tênis Nike Air colorido.
Ela usa uma saia curta sobre uma malha verde néon e blusa de manga comprida preta. O detalhe fica por conta dos óculos modelo gatinho.
Cada um a seu modo ajuda a “descontrair” os visitantes.
“Vamos lá, gente, é pra pular!”.
Num dos cantos da nave surge um “trenzinho”, comandado por um dos integrantes do grupo, um sujeito com uns dois metros de altura, extremamente pálido, careca, usando um uniforme militar estilizado e coturnos iguais ao do exército, só que na cor laranja.
O “trenzinho” arrasta os últimos que ainda estavam sentados nas cadeiras estofadas, enquanto no palco o casal comandava as coreografias.
“Agora com as mãos para o alto, assim!”.
“Agora joga os braços pra cima, pra direita. Bonito!”
“Agora joga os braços pra baixo, pra esquerda. Abalou!”
Aqui e ali surgem sprays de espuma, fornecidos sabe-se lá por quem e com quais intenções.
“Agora vamos fazer bem bonito que é pra acabar!”, anuncia o casal, enquanto pula de mãos dadas.
Após quarenta minutos, a banda encerra sua parte, cantando uma versão apoteótica de “My sweet Lord”, do ex-beatle George Harrison, com uma letra pseudo-evangélica.
O CEO da área de prospecção evangelística volta ao palco, dessa vez para apresentar o pastor Premium, o líder inconteste da mega-igreja, saudado por palmas lideradas pelo próprio.
Elegantemente trajado num belíssimo terno Armani, ele ocupa o centro do palco, que num efeito cuidadosamente preparado pela equipe de som e luz, começa a escurecer enquanto o foco de luz vai se tornando mais concentrado e brilhante sobre ele.
“Poderia falar horas e horas sobre o que a mega-igreja tem para oferecer a todos vocês, meus queridos, mas as imagens são mais fortes e poderosas do que palavras”, diz, enquanto um telão de tamanho descomunal desce lentamente às suas costas.
O salão fica então inteiramente às escuras.
As cenas inicias do filme mostram tomadas aéreas, num sobrevôo por um imenso gramado e depois um canteiro de lírios.
Uma música suave enche o ambiente, e a voz firme do narrador começa as perguntas: “Como é a sua vida? Você quer ser um vitorioso? Um líder? Um conquistador?”.
A resposta vem logo a seguir: “Então venha para a mega-igreja”.No fundo do palco, em meio a penumbra, o CEO olha para o pastor Premium e faz um sinal de positivo com a mão.

Para o alto e além...


Crises, ainda que passageiras, costumavam assolar aquela mega-igreja e geralmente inquietavam o alto escalão eclesiástico, sempre atento e preocupado com a repercussão de turbulências para a membrasia, chamada entre eles de “clientes”.
Uma das últimas crises teve início na apresentação do programa anual para os grupos de interação e convivência social, também chamados GICS.
Na verdade, o aparato montado lembrava uma palestra de algum renomado conferencista.
No maior dos cinco auditórios da mega-igreja, todo o staff reunido, os pastores da igreja em todas as graduações (Premium, Platinum, Gold, Silver, Advanced, Master, etc.), dezenas de OM´s (orientadores motivacionais), pastores convidados, pedagogos, repórteres das principais revistas evangélicas, representantes de outras denominações, enfim, um acontecimento.
Segundo o pastor Premium, líder da Coordenadoria de Assuntos Convivênciais, os GICS surgiram como uma proposta inovadora, desafiadora e revolucionária face a mesmice das jurrásicas Escolas Bíblicas Dominicais.
Ele não conseguia esconder que considerava a EBD um anacronismo diante da modernidade daquela mega-igreja.
“Imaginem, estudar a Bíblia folheando páginas e lendo versículos”, dizia ele. “A última palavra em didática de ensino e recursos pedagógicos estão à disposição de nossa mega-igreja e vamos usá-los”.
Até aí tudo bem se no momento seguinte ele não tivesse começado a expôr o programa dos GICS para o próximo ano, no qual constavam temas como: “Relacionamentos movidos por aptidões”; “Usando a psicologia na interação com os incrédulos”; “Força motivacional para o louvor”; “Novos paradigmas da fé”; “Estabelecendo vínculos entre os adoradores”; “Novas doutrinas para um novo milênio” e por aí vai.
O staff sorria de satisfação e os pastores convidados, alguns de outras denominações, faziam anotações no belíssimo material distribuído na entrada, que continha inclusive um DVD com a íntegra da apresentação.
Um dos novos orientadores motivacionais categoria Junior – a antiga denominação professor de EBD foi abolida – assistia a tudo, extasiado.
Havia se convertido há pouco tempo numa igreja de outro estado e era um dos mais novos “colaboradores” daquela igreja.
O fato de estar cursando pedagogia abriu-lhe as portas para conseguir uma vaga como OM .
No entanto, o programa apresentado lhe parecia estar incompleto.
Num impulso, sem pensar nas conseqüências, levantou a mão e, usando o microfone, perguntou:
“Pastor Premium, e o estudo da Bíblia?”
O pastor Premium, que caminhava no palco sob a luz direcional do canhão de luz, parou imediatamente, fuzilando o autor da pergunta com o olhar.
“Como assim, estudo da Bíblia?!”, rosnou ele, visivelmente irritado.
“Bem, eu quis dizer estudar os livros da Bíblia, os personagens bíblicos, a vida de Jesus, Espírito Santo, doutrinas e ...”, tentou argumentar, sem sucesso.
“Escute aqui, meu jovem” - interrompeu-o o pastor Premium - ”a proposta dos GICS é algo moderno, que resulta de anos de estudo e preparação junto a grupos de estudiosos em comunidades pedagógicas da França e da Alemanha, tudo realizado alicerçado em teses de professores e doutores de consagradas instituições de ensino”.
“O currículo do programa aqui apresentado deveria ser motivo de orgulho de todos os colaboradores dessa instituição e não ser alvo de críticas”.
Todos os olhares dos milhares de presentes no imenso auditório se voltaram para o inoportuno participante.
“Desculpe senhor, não foi essa a intenção”, balbucia o jovem, constrangido.
“Espero sinceramente que não tenhamos outras interrupções motivadas por questionamentos absurdos como esse”, vociferou, encerrando a questão.
O telão multi-mídia foi re-ligado, voltando a apresentar o belíssimo vídeo com o programa, que exibia imagens de pessoas de todas as idades sorridentes, com um fundo musical envolvente, enquanto os títulos do módulos surgiam do fundo da tela e iam crescendo em direção ao público.
O jovem autor da pergunta, sentindo-se desmotivado, levanta-se da cadeira e se dirige lentamente para a saída, com a Bíblia nas mãos.Ao passar pela saída do auditório, de cabeça baixa, ainda consegue ouvir os comentários de dois pastores categoria Gold, postados ao lado da porta de blindex: “Estudo da Bíblia, só me faltava essa!”.