sexta-feira, março 10, 2006

Todos são iguais, mas uns são mais iguais que outros


Uma insinuação que definitivamente não pode ser feita à mega-igreja é de que ali não haja igualdade de tratamento.
O próprio pastor Premium costuma dizer que “a justiça começa em casa”.
Por isso, quando numa sessão administrativa foi levantado um caso de disciplina envolvendo um dos sobrinhos do pastor Premium, houve um natural interesse dos membros.
Segundo testemunhas, durante um dos acampamentos de jovens realizados pela mega-igreja, um dos sobrinhos do pastor Premium, entediado com o “marasmo do local e com as atividades monótonas” - segundo suas próprias palavras - teria tentado “descontrair” o ambiente, ligando o sistema de som instalado no porta-malas de seu carro e deixando-o ligado em volume ensurdecedor tocando funk durante toda a noite, apesar dos protestos e apelos dos líderes. A situação se complicaria com a chegada da polícia, chamada pelos vizinhos do acampamento, pois o garoto, menor de idade, se recusou a mostrar os documentos do automóvel e ameaçou os policiais, dizendo que “eles não sabiam com quem estavam se metendo”.
O caso só veio à tona por insistência de um dos líderes, responsável pela programação do acampamento, que levantou no plenário e relatou o ocorrido, cobrando providências.
O pastor Premium, que dirigia a sessão, fez um ar solene e decidiu que seria formada uma comissão para “apurar os fatos, ouvir as testemunhas e decidir em conjunto que decisão tomar”.
O próprio pastor Premium nomeou a comissão que foi formada por ele, o pastor advanced (pai do garoto), o pastor Platinum (seu assessor), sua irmã (mãe do garoto) e o Humanitarian Relief Chief (seu sobrinho).
Após isso, ele nada mais falou e nada mais lhe foi perguntado.
Na sessão seguinte, naturalmente, a expectativa era grande.
No momento apropriado, o pastor Premium, relator da comissão, tomou a palavra e iniciou a leitura do relatório: “Irmãos da mega-igreja, nós nos reunimos com os líderes daquele acampamento, ouvimos várias testemunhas e também ouvimos o meu sobrinho, apesar de ainda estar traumatizado com tão dolorosa experiência. Diante de tudo que vimos e ouvimos, chegamos a algumas conclusões e decisões”.
“Primeiro, ficou evidente que a programação de nossos acampamentos precisa ser revista, de forma que haja atividades que envolvam os jovens, não deixando-os desmotivados nem enfadados. Nesse sentido, recomendamos que o responsável pela programação do referido acampamento seja advertido”.
“Segundo, os jovens de hoje são naturalmente inovadores e irreverentes. Tal característica deve ser entendida e trabalhada para que resulte em crescimento do jovem como indivíduo. A ação do jovem, ligando o som do seu carro, demonstrou uma inquietude criativa, que deveria ter sido explorada de forma positiva. Ali expôs também um gesto de não conformidade com o programa antiquado que, infelizmente, o responsável pela programação do acampamento impôs aos jovens. Recomendamos que, a partir de agora todos os acampamentos tenham a participação de um psicólogo, alguém realmente habilitado a lidar e interagir com os jovens”.
“Em terceiro lugar, os jovens de hoje são contestadores. Amados irmãos, é uma benção que tenhamos em nosso meio jovens que desde cedo revelem inconformismo com o exercício do autoritarismo arbitrário. Sim, fico feliz que meu sobrinho tenha dito não a pressão exercida por aqueles policiais, que tentaram, através de coação, fazê-lo desligar o som de seu veículo, exercendo dessa forma sua cidadania, seu direito de agir de acordo com seu livre arbítrio. Por outro lado, me entristece saber que os líderes do acampamento se uniram aos policiais e, ao invés de protegerem e ampararem meu sobrinho de tão covarde agressão, trouxeram o caso aqui para a sessão de forma incompleta, numa versão irreal. Diante disso foi decidido que o meu sobrinho, inclusive como forma de reparar a injustiça sofrida, passe a coordenar o grupo organizador de acampamentos”.
O pastor Premium fez então uma pausa para concluir o relatório.
“Infelizmente, em nosso trabalho de ouvir os participantes do acampamento, fomos informados de que dois jovens, filhos do responsável pela programação do acampamento, “furaram” a fila na hora do almoço.”
“Irmãos, algumas laranjas podres podem estragar todo o restante da cesta e diante dessa evidente falta de respeito ao direito dos demais irmãos, que evidencia uma grave falha de caráter, recomendamos a mega-igreja a exclusão desses dois jovens, para que sirvam de exemplo”.
Além de justo, disciplinador.

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